Estava eu, ainda meio grogue do jetlag depois de uma temporada deliciosa em Lisboa, quando o telefone toca. Do outro lado, minhas amigas fervendo no grupo: “Katia, fala sério, a Manuela Dias perdeu a mão em Vale Tudo?”. Respirei fundo, tomei um gole do meu moca e pensei a saudação.
Não vou mentir para vocês, queridos, eu não senhor esse remake de Vale Tudo, mas não podemos jogar a muito construída curso de Manuela no lixo.
A autora da Orbe pode até dividir opiniões, mas subestimar o talento dela é um erro. E eu explico o porquê.
Manuela Dias reinventou o drama brasílio
Antes de Vale Tudo, Manuela já tinha revolucionado a TV com Justiça (2016), uma minissérie que fez o público pensar e chorar, às vezes ao mesmo tempo. Quatro histórias que se cruzavam, um elenco impecável e uma estrutura digna de série britânica. O resultado? Nove indicações ao Emmy Internacional. Não é pra qualquer um.
Depois vieram Ligações Perigosas, uma adaptação elegante de um clássico gaulês, e Paixão de Mãe, que colocou o paixão materno e o caos brasílio na mesma panela.

Dias escreve com o coração
Enquanto muita gente na TV aposta em vilões caricatos e finais açucarados, Manuela prefere reprofundar em temas pesados porquê culpa, perdão, moral, afeto. Em Paixão de Mãe, ela falou sobre zelo. Em Justiça, sobre o limite entre evidente e falso. Em Ligações Perigosas, sobre poder e manipulação.
Não é pra quem quer leveza de romance das seis. É pra quem gosta de texto que cutuca e faz pensar.
Sem machismo
Secção das reações negativas a Vale Tudo tem mais a ver com o vestimenta de Manuela ser mulher do que com a trama em si. Basta ver o tom das críticas: agressivas, desproporcionais, e muitas vezes com uma pitada de misoginia. Quando um responsável varão experimenta e erra, chamam de ousadia. Quando uma mulher faz o mesmo, dizem que é “sinistro”.

A rainha dos múltiplos pontos de vista
Manuela tem uma habilidade rara. Ela consegue recontar uma história em que todos têm razão e ninguém é totalmente puro. Ela brinca com moral, emoção e perspectiva.
E o público pode até não perceber na primeira classe, mas essa estrutura complexa é o que transforma uma romance em um pouco mais do que entretenimento.
Ousadia implacável
Toda grande obra nasce do incômodo. No calor da exibição, o público reclama. Anos depois, vem o reconhecimento. Já vimos isso sobrevir com O Rei do Rebanho, Os Dias Eram Assim e outras produções que só ganharam status cult depois.
Autora que traduz o Brasil
Manuela Dias não escreve somente novelas. Ela traduz o Brasil com sentimentos, dilemas e contradições. Suas histórias não são fáceis, mas são sinceras.
E eu, que talvez não tenha querido cada minuto de Vale Tudo, ainda bato palma de pé pra coragem dessa mulher. Porque no termo das contas, é disso que a arte precisa.
